sábado, junho 11, 2011

A Beleza em Retalhos

Original Abstract Art – Contemporary Art Gallery by Osnat Tzadok

Vivemos como turistas em um ônibus trafegando em uma bela paisagem. Atravessando campos de girassóis e montanhas deslumbrantes. Os passageiros, inexplicavelmente, fecham as cortinas do ônibus. Não se dão conta da beleza que os circundam. Preferem perder tempo com discussões inúteis, procurando a melhor poltrona e quem demora mais no banheiro.
Paul Tilich escreveu: “Em todas as religiões a experiência do sagrado é mediado por alguma peça da realidade finita. Tudo pode se tornar um meio de revelação, um portador do poder divino”. Tudo inclui não só todas as coisas na natureza e na cultura, na alma e na história; inclui também os princípios, categorias, essências e valores. Entre estrelas e pedras, árvores e animais, conquistas e catástrofes, ferramentas e casas, escultura e melodia, poesia e prosa, leis e costumes, partes do corpo e funções da mente, relações familiares e comunidades voluntárias; através do tempo e do espaço, ser e não-estar, ideais e virtudes, o sagrado pode surpreender-nos e confrontar-nos. Há um rosto oculto nas dobras dos acontecimentos, deslizando pela matéria.
Eu sempre senti que as pessoas, de alguma forma, costumam imortalizar uma paisagem, que o simples fato de uma presença humana em um determinado lugar deixa uma marca. Walt Whitman estava certo quando festejou a melancolia e a beleza criada em um lugar por onde transita multidões e gerações que passaram por ela.
As ruínas são testemunhas da perda, restos de coisas e mantêm uma melancolia em si mesma. Ecos metafísicos. Trilhas que apontam para presenças ausentes. Caminhando a beira das ruínas de uma casa na fazenda da minha família, encontrei uma mariposa agarrada a um madeiramento que se mantinha em pé, protegida do vento. Toquei-a de leve, parecia hibernar, era colorida com um anel azul desenhado nas asas.
Acompanhando a cerca cheguei próximo a uma árvore cuja casca revirava como pipoca estourada. Comecei a descascá-la até que deparei com uma pequena borboleta, ela estava encolhida e tremia, parecia proteger-se do tempo frio. Quando o frágil raio de sol a tocou, ela se abriu como uma ostra.
Uma das coisas que eu costumo admirar são as borboletas. O formato, as cores, a leve e irrequieta dança. Mas há outra coisa: borboletas são evanescentes, um símbolo da transitoriedade. A sua fragilidade no tempo aumenta a sua beleza.
Quando era garoto, eu perseguia as borboletas; a atração era mais estética do que científica. Uma vez acompanhei o passeio de uma borboleta, por um estreito caminho, densamente sombreado, a beira de um riacho. Ela parecia flutuar sobre o manto de luz do sol. Era uma mistura de preta-roxa com fitas amarelas e azuis. Uma sublime combinação de cores que, no vestuário ou na decoração de casa, ficaria horrível.
Há pouco tempo voltei ao mesmo lugar onde persegui a inesquecível borboleta. O mato acabara com o santuário.
Mas ali estavam alguns pés de laranja com jóias amarelas penduradas nos galhos espinhosos. Eu as pego e inundo o ar com sua sedutora fragrância. Raios de ouro brilhavam através das suas folhas.
Domesticar os olhos. É o que venho tentando fazer. Cheguei a conclusão de que já perdi muitas laranjeiras louvando a Deus no final de uma safra maravilhosa, espalhando a cor de ouro brilhante, com suas folhas iluminadas pelo sol. Já perdi um casal de gansos com suas cabeças reverentemente inclinadas para Deus.
Há alguns dias eu vinha caminhando pela rua da minha casa, e um casal de arara azul, empoleirado em uma das antigas palmeiras que enfeitam o jardim de uma residência, conversava animadamente. Parei e fiquei prestando atenção no diálogo arrebatado. Gostaria de conhecer a sua linguagem ou ter à mão um tradutor. A quinze metros, quatro mulheres também conversavam acaloradamente. No entanto, as palavras proferidas pareciam tão insípidas quando comparadas a enérgica colocação da arara. Encantado, isolei os meus sentidos das “papagaiadas” humanas, e, durante cerca de cinco minutos me entreguei ao universo das araras.
Alguns dias depois, em um dos postes de madeira da rua onde moro, um casal de pica-pau batucava animadamente, com seus belíssimos topetes vermelhos. Um João de Barro retocava a sua casa em um poste em frente a minha casa. E uma orquestra de pássaros posicionou-se no muro e na antena parabólica da minha casa.
Fiquei pensando nas palavras escritas por Isak Dinesen: “Uma ave, se forçar ao máximo a capacidade de suas asas, poderá encontrar ou passar por um anjo numa das trilhas agrestes do espaço celeste. Quem sabe a asa da andorinha já roçou o pé de um anjo, ou o olhar de uma águia, ao sentir suas se exaurirem, encontrou os olhos calmos de um dos mensageiros de Deus”.
Poderia os anjos orientar os pássaros a pousarem nas estradas que eu trilho?
Quando era um garoto, nunca imaginei que a natureza faria parte da minha mitologia pessoal. Era um menino apaixonado por árvores, pequenos insetos e trilhas na mata. Fui passar alguns dias na casa da minha tia, não havia energia elétrica e às 18 horas a escuridão que dominava o ambiente somente era quebrada pela frágil luz de uma lamparina. A escuridão da noite na fazenda provocou intensa tristeza misturada a medo. O meu heroísmo resistiu à apenas uma noite.
Mesmo assim, florestas e bosques me dão a impressão de um santuário, um local onde é possível que os contos de fadas tornem-se realidade. O mundo é um símbolo de uma grande generosidade. Após 20 anos no exterior, Henry James visitou a Nova Inglaterra, durante o outono, e prestou atenção no imenso consolo, beleza, dignidade e elegância de uma floresta: “Como uma jovem mulher vestida para um baile à fantasia”.
A poesia foi a minha principal orientadora no caminho da natureza. Para Wordsworth “A natureza é uma inesgotável fonte de fantasias e provocante encantamento”.
Há alguns dias caminhei por uma antiga trilha no meio da mata fechada da fazenda da família. Sentei em uma grande pedra e fiquei admirando a beleza das imponentes e elegantes árvores, enquanto muitos pássaros cantavam e pulavam de galho em galho. Os brotos verdes de plantas e flores selvagens abriam caminho através da terra.
Em dias assim os pássaros voam pelo vale, a chuva derrama-se sobre a fazenda, e filetes de água descem da mata escorrendo para o rio. A água está cheia de sedimento e galhos. Os gritos de alguns animais parecem chamar de volta a esperança.
À beira do rio peguei algumas pedras. Uma pedra branca parecia um pequeno ovo, outra uma meia lua. Caminho na areia e tenho a sensação de caminhar em seda desfiada.
Assisti a um filme em que a personagem escreveu: “Os jovens amantes procuram a perfeição”. E ele respondeu: “Os velhos amantes conhecem a arte de costurar retalhos. E de ver a beleza dos remendos”.
Quando vou a fazenda pego os retalhos, costuro-os e fico olhando a beleza dos remendos. Cada novo amanhecer, cada gota de chuva, cada orquídea, cada lâmina da grama, cada formigueiro, cada toque de uma mão querida, cada abraço de uma criança sorridente, cada tomada de um bom filme, cada nota de um concerto de Mozart. Junto tudo isto com aquilo que encontro pelo caminho.
A poetisa Emily Dickinson dizia que o único mandamento que não havia quebrado era “Olhai os lírios do campo”. Tenho tentado fazer o mesmo.
Thomas Hobbes aconselhou a acompanhar as sebes a beira da estrada quando andamos errantes, sem mapas e correndo perigo. Ele está certo, mas às vezes as nossas estradas não têm sebes. Então, nessas horas de angústia precisamos olhar para a natureza e ouvir a voz de Jesus: “Não andeis ansiosos... olhai os lírios do campo... vós valeis muito mais do os pardais”.
Num bar em Paris durante o dia, uma jovem mulher se aproxima de um homem de meia-idade e diz que tinha lido uma coisa fantástica numa revista e precisava falar disso com alguém. Era o seguinte: no México, cientistas contrataram carregadores para levá-los ao cume da montanha de uma cidade inca. A certa altura, os carregadores não quiseram mais prosseguir. Os cientistas, irritados, não sabiam mais como fazê-los seguir adiante. Não entendiam os motivos de uma parada tão prolongada. Após algumas horas, os carregadores recomeçaram a andar e, finalmente, o chefe deles deu uma explicação: eles tinham corrido muito e estavam esperando suas almas chegarem. A moça que contou esta história – uma personagem de “Além das nuvens”, filme do diretor Michelangelo Antonioni, – comentou: “É fantástico, porque também corremos atrás de nossas coisas e perdemos nossas almas. Devíamos esperar”.
Realmente, corremos atrás de tantas coisas que nossas almas não vêem mais a beleza dos lírios do campo.
Sempre que ando nas matas presto atenção nas velhas árvores. Existem vários pontos apodrecidos, onde pássaros fazem ninhos nas suas cavidades. Não é assim com Deus? Ele pega os fracassos, falhas, dores, ruínas e transforma em vida, alegria, luz e abundância.
Alguns desastres são visíveis, fáceis de notar, como uma árvore que não resistindo à tempestade, perde vários galhos – a morte de um querido, as decepções etc.. Outros são mais silenciosos e, aparentemente, invisíveis. Como os pequenos furos na casca de uma árvore – um relacionamento que se desfaz, um amigo que quebra a promessa, um emprego que perdemos.
Quando uma árvore morre, ela se torna uma pequena casa confortável para vários animais. Pequenas criaturas ainda encontram refúgio em seu interior. Quando estamos feridos, aparentemente mortos, Deus pode preencher os lugares mortos com olhos brilhantes e sons vibrantes. Se Deus pode utilizar o “cadáver” de uma velha árvore para sustentar a alegria da vida, pode fazer brotar a alegria em nosso interior machucado.
Há poucos dias vi alegres abelhas entrando e saindo de um buraco em uma velha árvore. Ali dentro um rio de mel deslizava suavemente. O zumbido das abelhas enchia o ar. Um pouco adiante, borboletas amarelas, pretas e laranjas flutuavam. Havia de todos os tamanhos e cores. Uma pequena, do tamanho da unha do polegar, desfilava a roupa azul e verde. Besouros pareciam guerreiros medievais com suas reluzentes armaduras. Insetos com voz soprano acompanhavam o zumbido das abelhas. Passarinhos bicavam as jabuticabas.
Eu vi o dedo de Deus na primavera passada fazendo brotar o tomate, a melancia e as flores e, no inverno, acariciando suavemente a natureza, mandando-a dormir e esperar o momento do renascimento.
Deus me tocou e foi tocado: nas palavras com as quais eu trabalhava, me movendo por caminhos que eu devia andar, mas não queria fazê-lo. Eu o vi no sol do verão e da esperança, no vento de outono e na reflexão, no frio a endurecer os dedos das mãos, esparramando-se pela grama que protege as vidas de pequenos animais que aguardam a primavera para sair do refúgio.
Posso não ter visto Deus ou anjos. Mas tenho visto as águas agitadas que revelam a sua presença. E, pouco a pouco, tenho olhado o mundo como a superfície de um lago, sabendo que há muitas coisas ocultas, e que preciso mergulhar para vê-las.

(Trecho do livro “Um Grito de Ausência” © de Samuel Rezende )

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