quarta-feira, maio 08, 2019

Árvores Sagradas

            A maioria das crianças gostava de escalar árvores. Era parte da infância. Eu não. Leitor inveterado as árvores pareciam sagradas. Da árvore do Éden passando pelo arbusto em chamas que não se consumia de Moisés até inúmeras árvores da floresta de Sherwood de Robin Hood, eu sempre as vi sobre uma lente mágica.
            Florestas e bosques me dão a impressão de um santuário, um local onde é possível que os contos de fadas tornem-se realidade. Não freqüento bosques sagrados para adorá-los – como os israelitas fizeram, provocando a ira de Deus. Mas sinto que a ruptura radical provocou a extinção de algo: nós drenamos a luz dos ramos no bosque sagrado e aplainamos os lugares elevados, enxugamos os córregos sagrados. Saímos do panteísmo para o ateísmo. O resultado é que o mundo moderno despiu-se do encanto e o tédio fez morada no coração desocupado.
            No Brilhante tenho três árvores sagradas próximas a casa onde a minha mãe nasceu, cresceu e casou com meu pai. Quando era criança, nos finais de semana construí lentamente um relacionamento especial com uma delas. O grande tronco ocultava um menino sentado sozinho do outro lado usufruindo da sombra protetora e da antiga canção que suas folhas balançadas pelo vento entoavam.

            Mas o tempo passou e na juventude elas perderam um pouco do encanto porque o jovem movido pelos hormônios não mais prestava atenção as suas companheiras. Enquanto acumulava alguns bens o menino crescido se tornava mais e mais infeliz. Talvez quando as árvores o viam passar gritavam “volte para o Éden. Não deixe o menino morrer. A felicidade está no menino. A magia está nele”.
         As minhas filhas nasceram e o menino despertou lentamente, preguiçosamente, porque o mundo ainda precisava ser conquistado.
            Mas Deus se compadeceu e não o deixou acordar numa idade tão avançada que já não tivesse força e alegria para brincar. O menino despertou a tempo de ensinar as filhas a prestar atenção na magia do mundo à sua volta, na beleza incrustada nas coisas mais comuns, nos pequenos detalhes do dia a dia. 
            À sombra de uma das três árvores sagradas e vigiada pelas outras duas, uma das minhas filhas casou. Há alguns metros, há muitos anos, meus pais se casaram.
                Quando vou à fazenda recebo as “bênçãos” das três árvores. Ali converso com Deus, peço que os anjos levem alguns recados aos meus pais e, quando a noite desce, a brisa parece trazer suas vozes a mim.
                      Estas árvores me levam a um dos meus filmes preferidos, “A Árvore da Vida”. Um dos personagens deste filme diz: “A única maneira de ser feliz é amando. Se você não ama a vida passa rapidamente diante de seus olhos. Faça o bem. Admire. Acredite”.
            Se uma árvore parece um corpo humano, os olhos de um ser humano parecem estrelas, e estrelas espalhadas no céu assemelham-se a uma escala musical que por sua vez pode levar a uma hierarquia de anjos, e assim, ad infinitum, uma imagem leva a outra num movimento progressivo rumo a Origem de todas as coisas.
            Talvez, pensando nisso, o personagem interpretado por John Malkovich, no filme “Além das Nuvens” de Antonioni e Wenders, diz: “Sob a imagem que se revela há outra mais fiel a realidade. Abaixo dela está outra, e mais outra, até chegarmos a verdadeira imagem daquela realidade absoluta...”.
            Se o lado mal da condição humana veio à tona debaixo de uma árvore no jardim do Éden, o “final” da história nos conduz a árvore da vida.
            Enquanto a árvore da vida não chega, continuo visitando minha árvore sagrada. Ela tem um buraco no tronco. Quem sabe vejo um coelho apressado mergulhando num outro mundo ou encontro o Gato de Cheshire num dos seus galhos, porque Alice vem aí. E o mundo mágico de Deus movido por sua infinita graça e misericórdia se renova.


quarta-feira, maio 01, 2019

Crônica de Estrada


A moça sentada ao meu lado exalava um cheiro intenso de goma de mascar. No banco da frente uma mulher abria um pacote de salgadinhos espalhando mais um cheiro sintético e forte. Aliás, a rodoviária não é o que de melhor pode se encontrar nesse universo. Tive que sentar por lá por uns quarenta minutos, esperando o ônibus para Jaciara: distraí-me lendo John Updike, mas era difícil esquecer o forte cheiro de gordura das lanchonetes que proliferam por todos os lados. O que vão fazer as pessoas quando chegam à rodoviária uma hora antes da partida do ônibus? Você senta num lugar feio, pede alguma coisa engordurada e de má aparência e come; se tenta escapar disso, sentando em algum banco para ler, é perseguido pelo cheiro da fritura que permeia toda a rodoviária.
            Parece não haver escapatória: a rodoviária é o reino da feiura. Deveria ser um alívio entrar no ônibus. Mas o velho passatempo de comer marca presença: a mulher com o pacote de salgadinhos, crianças com pacotes de salgadinhos. É incompreensível o descaso de algumas pessoas com o seu cheiro. Não me refiro apenas ao odor do corpo, refiro-me ao cheiro do cigarro em suas roupas, o cheiro do que acabou de comer.
            Tentei trazer à baila minhas lembranças mais atraentes desse universo olfativo. Sempre fui muito atento à beleza dos aromas, não me adapto à média da humanidade que relega o sentido do olfato ao segundo plano. Fico admirado diante de pessoas que não possuem sensibilidade para aromas. Por um momento, fechei os olhos e mergulhei na lembrança daquele universo de cheiros: as flores espalhando seus aromas num fim de tarde; o paiol com o milho guardado, caminhar numa floresta sentindo o cheiro úmido exalando das árvores e folhas, o perfume da pessoa amada.
            Abro os olhos e estou de volta.
            Existe sempre um momento quando as conversas animadas já serenaram e as pessoas estão silenciosas, quando tudo que existe é o som do motor que parece vir de muito longe embalando o suave trepidar do ônibus. Sinto um admirável momento de suspensão da realidade: tudo parece onírico. Abro os olhos. Estão todos lá, parados. O universo todo parece estar parado, sem cheiros, sem sons outros que este murmurar distante. A moça ao lado parece dormir profundamente. Lá adiante, duas cabeças, apoiadas uma contra a outra. É o casal que estava à minha frente, sentado num banco, enquanto esperava na rodoviária. Uma jovem de rosto suave e delicado, um homem de mais de trinta anos, princípio de calvície no topo da cabeça.
            O reconhecimento traz de volta a realidade. O ônibus continua sua breve viagem de lugar nenhum para algum lugar.  
            Uma vez em casa aproveitei para rever velhos conhecidos. Certos filmes e livros são como bons vinhos, ou melhor, são como os grandes amigos dos quais podemos passar muitos anos distantes, e, no entanto, suas lembranças permanecem sempre atuais. Se disser que bebo vinho das uvas produzidas no morro dos ventos uivante, não digo mais do que as peculiaridades de se conhecer lugares e amigos importantes e interessantes, e por mais incompreensível que assim o diga, tudo resulta muito simples.
            Paro em frente a estante, pego um livro e folheio parando numa página grifada: “Revi-me com sete anos de idade, quando um colega de aula, indelicado, me anunciou que Papai Noel não existia. Caía o encantamento de um mundo. Cabia-me tentar, ao longo da vida, reencantá-lo com palavras e músicas, mulheres e amores. Irene foi essa mulher que reencantou o mundo perdido de uma infância, e também quem o fez desaparecer. Não houve a amargura que eu tinha imaginado; somente uma indiferença dolorosa”, escreveu Yves Simon em “O próximo amor”.
           Pego o dvd do filme “Bagdad Café” para rever. A primeira vez foi no tradicional “corujão”.

           O filme começa com a música “Calling You” na voz de Jevetta Steele. O observador mais perspicaz já consegue perceber que haverá mudanças, quando a canção diz: Uma brisa quente vem em minha direção… a mudança está se aproximando… chegue mais perto, doce libertação”.
         Essa “mudança” encarna-se numa “forasteira” que salta do carro do esposo que a maltrata e resolve seguir seu caminho sozinha. Ela chega ao Bagdad Café e após um choque inicial, consegue, valorizando seus semelhantes, conquistar os moradores daquele lugar abandonado. Pouco a pouco a espelunca adquire vida, o pequeno e sujo conjunto Bagdad Café torna-se um ponto de encontro de pessoas alegres, onde em meio a música, espetáculos de mágica, danças, conversas, sorrisos, relacionamentos são construídos e reconstruídos.

             Os personagens descobrem que as perdas podem libertar, que a magia do amor pode aparecer em qualquer lugar (até mesmo no meio do deserto) e que a felicidade, embora abstrata, germina quando se dá importância às pequenas coisas que alegram aqueles que nos rodeiam.            
             Depois dessa peregrinação entre rodoviária-livro-ônibus-casa-livro e cinema, tenho a impressão que a nossa jornada, aparentemente banal, oculta uma joia preciosa: “Não deixaremos de explorar e, ao término da nossa exploração deveremos chegar ao ponto de partida e conhecer esse lugar pela primeira vez” escreveu T. S. Eliot.

              Preciso rever alguns pontos da minha visão ciclope sobre a rodoviária.

            Por falar nisso, você está explorando a vida ou simplesmente passando por ela?