A
moça sentada ao meu lado exalava um cheiro intenso de goma de mascar. No banco
da frente uma mulher abria um pacote de salgadinhos espalhando mais um cheiro
sintético e forte. Aliás, a rodoviária não é o que de melhor pode se encontrar
nesse universo. Tive que sentar por lá por uns quarenta minutos, esperando o
ônibus para Jaciara: distraí-me lendo John Updike, mas era difícil esquecer o
forte cheiro de gordura das lanchonetes que proliferam por todos os lados. O
que vão fazer as pessoas quando chegam à rodoviária uma hora antes da partida
do ônibus? Você senta num lugar feio, pede alguma coisa engordurada e de má
aparência e come; se tenta escapar disso, sentando em algum banco para ler, é
perseguido pelo cheiro da fritura que permeia toda a rodoviária.
Parece
não haver escapatória: a rodoviária é o reino da feiura. Deveria ser um alívio
entrar no ônibus. Mas o velho passatempo de comer marca presença: a mulher com
o pacote de salgadinhos, crianças com pacotes de salgadinhos. É incompreensível
o descaso de algumas pessoas com o seu cheiro. Não me refiro apenas ao odor do
corpo, refiro-me ao cheiro do cigarro em suas roupas, o cheiro do que acabou de
comer.
Tentei
trazer à baila minhas lembranças mais atraentes desse universo olfativo. Sempre
fui muito atento à beleza dos aromas, não me adapto à média da humanidade que
relega o sentido do olfato ao segundo plano. Fico admirado diante de pessoas
que não possuem sensibilidade para aromas. Por um momento, fechei os olhos e
mergulhei na lembrança daquele universo de cheiros: as flores espalhando seus
aromas num fim de tarde; o paiol com o milho guardado, caminhar numa floresta
sentindo o cheiro úmido exalando das árvores e folhas, o perfume da pessoa amada.
Abro os olhos e estou de volta.
Existe sempre um momento quando as
conversas animadas já serenaram e as pessoas estão silenciosas, quando tudo que
existe é o som do motor que parece vir de muito longe embalando o suave
trepidar do ônibus. Sinto um admirável momento de suspensão da realidade: tudo
parece onírico. Abro os olhos. Estão todos lá, parados. O universo todo parece
estar parado, sem cheiros, sem sons outros que este murmurar distante. A moça
ao lado parece dormir profundamente. Lá adiante, duas cabeças, apoiadas uma
contra a outra. É o casal que estava à minha frente, sentado num banco,
enquanto esperava na rodoviária. Uma jovem de rosto suave e delicado, um homem
de mais de trinta anos, princípio de calvície no topo da cabeça.
O reconhecimento traz de volta a
realidade. O ônibus continua sua breve viagem de lugar nenhum para algum lugar.
Uma vez em casa aproveitei
para rever velhos conhecidos. Certos filmes e livros são como bons vinhos, ou
melhor, são como os grandes amigos dos quais podemos passar muitos anos
distantes, e, no entanto, suas lembranças permanecem sempre atuais. Se disser
que bebo vinho das uvas produzidas no morro dos ventos uivante, não digo mais
do que as peculiaridades de se conhecer lugares e amigos importantes e interessantes, e por
mais incompreensível que assim o diga, tudo resulta muito simples.
Paro em frente a estante, pego um livro e folheio parando numa página grifada: “Revi-me com sete anos de idade, quando um colega de aula,
indelicado, me anunciou que Papai Noel não existia. Caía o encantamento de um
mundo. Cabia-me tentar, ao longo da vida, reencantá-lo com palavras e músicas,
mulheres e amores. Irene foi essa mulher que reencantou o mundo perdido de uma
infância, e também quem o fez desaparecer. Não houve a amargura que eu tinha
imaginado; somente uma indiferença dolorosa”, escreveu Yves Simon em “O próximo
amor”.
Pego
o dvd do filme “Bagdad Café” para rever. A primeira vez foi no tradicional “corujão”.
O filme começa com a música “Calling
You” na voz de Jevetta Steele. O observador mais perspicaz já consegue
perceber que haverá mudanças, quando a canção diz: “Uma brisa quente vem em minha direção… a mudança está se aproximando… chegue
mais perto, doce libertação”.
Essa
“mudança” encarna-se numa “forasteira” que salta do carro do esposo que a
maltrata e resolve seguir seu caminho sozinha. Ela chega ao Bagdad Café e após
um choque inicial, consegue, valorizando seus semelhantes, conquistar os
moradores daquele lugar abandonado. Pouco a pouco a espelunca adquire vida, o
pequeno e sujo conjunto Bagdad Café torna-se um ponto de encontro de pessoas
alegres, onde em meio a música, espetáculos de mágica, danças, conversas,
sorrisos, relacionamentos são construídos e reconstruídos.
Os
personagens descobrem que as perdas podem libertar, que a magia do amor pode
aparecer em qualquer lugar (até mesmo no meio do deserto) e que a felicidade,
embora abstrata, germina quando se dá importância às pequenas coisas que
alegram aqueles que nos rodeiam.
Depois
dessa peregrinação entre rodoviária-livro-ônibus-casa-livro e cinema, tenho a
impressão que a nossa jornada, aparentemente banal, oculta uma joia preciosa: “Não
deixaremos de explorar e, ao término da nossa exploração deveremos chegar ao
ponto de partida e conhecer esse lugar pela primeira vez” escreveu T. S. Eliot.
Preciso
rever alguns pontos da minha visão ciclope sobre a rodoviária.
Por
falar nisso, você está explorando a vida ou simplesmente passando por ela?
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